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Primeiro as flores, depois as agressões


Quando Júlia recebeu o primeiro empurrão, após três meses de namoro, ela não imaginava que um ano e meio depois estaria em frente à Delegacia da Mulher, a procura de ajuda. A moradora de Santa Cruz é uma das 126 vítimas de lesão corporal do município. O número contabiliza apenas os casos do primeiro semestre de 2019.


A jovem de 31 anos não se chama Júlia – sua identidade será preservada. Mas ela é uma das centenas de mulheres que encontram, na promessa de amor, sofrimento. Ela conheceu o agressor no final de 2017 e pouco tempo depois descobriu uma traição e terminou o relacionamento. “Então, ele mandou entregar flores em meu trabalho, fui conversar com ele e o perdoei”, lembra.


Júlia ainda não sabia, mas aquela reconciliação, marcada por expectativas de um futuro feliz, transformou sua vida, dia após dia, em escuridão. O ciúme excessivo o fazia levantar a voz e até fez com que ele quebrasse o seu celular. Essas atitudes evoluíram para apertões no braço, empurrões e chutes.


Em nenhum momento o homem pediu perdão. “Para ele, eu merecia. Merecia porque o questionava, porque era mulher e porque não deveria me expor. E muitas vezes acreditei que ele estava certo. Cheguei a pensar que eu era a culpada por ele perder a cabeça e me bater”, conta. E então os dias passavam e ela continuava confiando de que tudo ficaria bem.


Mas nada ficava. “Ele sempre foi extremamente manipulador. Controlava meus horários, me proibiu de ir à academia, me fazia pensar mal das pessoas, monitorava com quem eu falava e regrava meu contato com minhas amigas e até com minha mãe. Várias vezes durante as noites, ele foi até minha casa só para ver se meu carro estava na garagem”, lamenta.


Um pedido de casamento e mais violência

Em 28 junho de 2018, o mesmo homem que a deixava com hematomas preparou uma surpresa e a pediu em casamento. “Existiam momentos em que ele era incrível, romântico, carinhoso e eu só me apegava a isso. Sentia-me culpada quando pensava mal dele. Como um cara que é incrível em um dia podia se transformar em um monstro no outro”, conta.


Entretanto, mais brigas passaram a acontecer e o sentimento de posse apenas aumentava. Foi quando Júlia resolveu adiar o casamento. Depois disso, desconfiou de uma traição e questionou o noivo. “Ele inventou várias desculpas e depois me agrediu na frente dos pais dele. Fui embora. Mas depois descobri que ele estava mal e que não comia. Desculpei outra vez”, narra.


Ela e o homem casaram e foram morar juntos em setembro. “Foi quando minha vida virou um inferno”, diz. Ele passou a mentir, trocava mensagens com outras mulheres e negava. “Toda vez que eu cobrava, ele dizia que eu era louca. Se eu insistia, era agredida e ouvia que a culpa era minha. Foi quando eu realmente acreditei que era culpada e me tornei ainda mais submissa”, fala.


Por medo de tirá-lo do sério, Júlia passou a cuidar todos os seus comportamentos. Parou de visitar quem amava e muitas vezes nem ia trabalhar. Em uma tentativa de conversa, no dia 29 de junho de 2019, ela enfrentou a pior agressão. “Ele começou a me jogar de um lado pra outro no quarto, me jogava contra parede e no chão. Me atingiu com um soco no seio e chutes no estômago”, relembra. Júlia ficou sem ar, parada, sem reação.


Pela primeira vez, ela buscou ajuda. Foi na casa de uma amiga, que a aconselhou a procurar a polícia. “Cheguei à Delegacia da Mulher transtornada. Policiais militares me ajudaram, foram extremamente delicados e me levaram para fazer ocorrência no centro. Fiquei com medo de contar, porque enquanto eu não falava para alguém, parecia que aquilo não estava acontecendo”, diz.


Mesmo com a medida protetiva, Júlia encontrou outra maneira para se sentir segura: relatou sua história nas redes sociais. “Se algo acontecesse, meus amigos saberiam. Quando as pessoas começaram a compartilhar, a me mandar mensagem de apoio, percebi que eu não estava sozinha. Vi que não precisava ter vergonha, pois as pessoas acreditavam em mim”, comenta.


Não se cale

Júlia percebeu, depois de tanto sofrimento, a importância de não ficar quieta. “Não se isole. Precisamos falar e mostrar que temos força e somos capazes”, indica. E ela falou. Falou nas redes sociais e nessa reportagem porque quer inspirar outras mulheres a saírem de relacionamentos abusivos. De incentivar o amor próprio e o diálogo, cada vez mais forte, entre amigas.


E é essa união entre mulheres que a advogada, vice-presidente do Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de Santa Cruz do Sul e professora pesquisadora na área de direito das mulheres e violência doméstica, Nicole Weber, defende. “A questão da violência doméstica não tinha nem nomenclatura. É bom darmos nomes a essas situações, para que elas sejam punidas pela lei e para que possamos mudar essa cultura”, diz.


Nicole ainda salienta que a psicologia explica que há diversas fases no ciclo de violência: implicância com a roupa, amigos e familiares, obsessão por olhar o seu celular e quer a senha de todas suas redes sociais. São pequenas coisas que vão se transformando em um relacionamento tóxico. Depois vêm as violências verbais e físicas. "E quando menos percebe, você acredita que merece e começa a aceitar as agressões”, explica.

A conselheira pede ainda mais compaixão e sensibilidade com a dor do outro. “Se eu ficasse de frente com cada vítima da violência doméstica, daria um abraço e diria que ela é forte e não está sozinha. Falaria para ela confiar nas autoridades e em que luta pela causa”, ressalta.


Para denunciar As mulheres vítimas de qualquer tipo de violência podem procurar atendimento e denunciar as agressões | Escritório de Defesa da Mulher: das 8 às 12 horas e das 13 às 17 horas, no Centro Integrado de Segurança, no bairro Arroio Grande, em Santa Cruz do Sul | Delegacia da Mulher, no Centro Integrado de Segurança, no bairro Arroio Grande, em Santa Cruz do Sul (apenas horário comercial) | Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), na rua Ernesto Alves, em qualquer horário | Via telefone, no 190, acionando a Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar | Há também o Disque 180, que é o Disque Violência contra a Mulher.


E sempre que for registrar um boletim, segundo Nicole, o importante é contar detalhes para que o juiz possa ter subsídios para deferir as medidas protetivas e o afastamento do lar. “Ele precisa ter muito conhecimento e informação. Quanto mais detalhes, se já agrediu outra vez, se uma criança presenciou, um idoso, melhor”, orienta ela, que solicita ainda que as mulheres peçam exame de corpo de delito e, se possível, registram fotos do local da agressão. Se houver, ainda, alguma prova contra o agressor, como áudio ou mensagem de ameaças, que levem consigo.

 
 
 

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